Uma nova proposta para entender como se retrata no presente a Guerra Colonial Portuguesa através de monumentos e museus

André Caiado é estudante do programa de doutoramento em Patrimónios de Influência Portuguesa, do Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra, estando a desenvolver o projeto “A monumentalização da Guerra Colonial Portuguesa: uma análise diacrónica”, orientado por Miguel Cardina e Roberto Vecchi. 

Foi a experiência de investigação no mestrado que despertou no André Caiado a vontade de fazer um doutoramento. E foi o ingresso no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, enquanto gestor de projetos, e mais tarde na equipa do projeto de investigação “CROME – Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio: as Guerras Coloniais e de Libertação em Tempos Pós-Coloniais”, que acabou por o trazer ao tema da Guerra Colonial Portuguesa.

Um projeto que, centrado na Guerra Colonial Portuguesa, quer contribuir para perceber como é que o passado é relembrado, comemorado ou, muitas vezes, silenciado e esquecido, de forma a trazer aos decisores e à sociedade novas propostas para escutar e (re)tratar passados difíceis no presente.

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Qual é o objetivo do teu projeto de investigação?

O meu trabalho versa sobre políticas de memória e processos de memorialização da Guerra Colonial Portuguesa, o conflito que o Estado Português encetou contra os movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné, entre 1961 e 1974.

O que tenho analisado são dois processos de memorialização do conflito: a monumentalização e a musealização. Vou analisar quais são as imagens, os discursos, as representações, os imaginários e os ideários sobre a Guerra Colonial que são projetados através destes processos de memorialização. Estou a fazer uma análise diacrónica, que procura perceber como é que estes dois processos foram evoluindo ao longo de várias décadas. Para dar um breve contexto, o processo de construção de monumentos evocativos da Guerra estende-se há quase 60 anos: o primeiro monumento a ser construído, do qual há registo, data de 1963 e o último foi inaugurado no mês passado.  

Em relação à monumentalização, analiso a evolução das várias dinâmicas sociais da construção de monumentos e a evolução e as mudanças das formas dos monumentos, das imagens que incorporam, das opções iconográficas e escultóricas que apresentam e das próprias mensagens que têm inscritas, o que me permite tirar algumas inferências sobre a evolução da memória pública da Guerra na sociedade portuguesa.

Sobre a musealização, o que faço é analisar a forma como a Guerra tem vindo a ser tratada em museus que têm exposições dedicadas ao tema, que não são muitos no contexto português. Estou a analisar três tipologias de museus: 1) os museus das Forças Armadas Portuguesas (os Museus Militares do Exército, o Museu de Marinha e o Museu do Ar); 2) os museus de associações de antigos combatentes ou de veteranos (Museus da Liga dos Combatentes e o Museu da Associação de Comandos); 3) o Museu da Guerra Colonial, que é único museu existente em Portugal dedicado ao conflito. Nesta análise, pretendo estabelecer um estudo comparativo entre eles, procurando perceber quais são as diferenças em relação aos modos de abordar a Guerra nas várias tipologias de museus. Analiso como os contextos sociais e históricos que despoletaram o conflito são ou não abordados nas exposições, o modo como os museus retratam ou não os militares das Forças Armadas Portuguesas e os combatentes dos movimentos de libertação africanos, e ainda a forma como memorializam os antigos combatentes das Forças Armadas Portuguesas. 

Nos dois processos que analiso – a monumentalização e a musealização da Guerra Colonial Portuguesa –, numa primeira frase, o principal eixo de analise é tentar perceber as representações dominantes, aquilo que está mais representado e, numa segunda fase, perceber o que está sub-representado ou que não está representado de todo.

Como é que surge a ideia de investigar esta área?

Este trabalho surge no âmbito do projeto de investigação “CROME – Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio: as Guerras Coloniais e de Libertação em Tempos Pós-Coloniais”, coordenado por Miguel Cardina e financiado pelo European Research Council. Em traços gerais, o projeto pretende analisar a memória da Guerra Colonial e das lutas de libertação, numa perspetiva cruzada e diacrónica, estudando o modo como o conflito tem vindo a ser recordado, desde o seu fim até à atualidade, mais especificamente a partir de memórias sociais e políticas.

Através dos estudos da memória, temos procurado analisar a forma como este evento histórico é recordado, evocado e, muitas vezes, instrumentalizado para outro tipo de objetivos no presente. Temos vindo a estudar, nomeadamente, a forma como a Guerra Colonial tem vindo a ser usada como evento de inscrição para, por exemplo, se projetarem outro tipo de ideários políticos no presente.

Que novos entendimentos pretende trazer este projeto?

Identifico dois tipos de impacto que gostaria que o meu trabalho tivesse. Em primeiro lugar, um impacto mais académico, ao nível da produção de conhecimento, e, em segundo lugar, ao nível social.

Acho que o contributo académico que espero que o meu trabalho venha a dar passa por trazer um novo entendimento sobre a forma como estes processos de memorialização são dinâmicos e influenciam, e são influenciados, por aquilo que são as narrativas públicas e a memória pública sobre a Guerra que circula na sociedade portuguesa. Por outro lado, pretendo também trazer novos entendimentos sobre as experiências e memórias pessoais e, muitas vezes, as convicções políticas, ideológicas ou partidárias dos tais agentes de memória que encetam vários processos e agem de forma ativa para criar novas narrativas e produtos de memória sobre a Guerra. Neste âmbito, a ideia passa por perceber como é que influenciam, de forma direta, as narrativas e memórias que se projetam no espaço público.

O outro contributo que gostaria de deixar está relacionado com um novo conhecimento sobre como estes processos de memorialização, monumentalização e musealização são ajustados, adaptados e influenciados por aquilo que é a evolução da memória pública da Guerra Colonial na sociedade portuguesa. As imagens e representações que os monumentos tinham nos anos 70 ou 80 são muito diferentes daquelas que têm atualmente. Houve, de facto, uma alteração, que está diretamente relacionada com vários processos de abordagem e de discussão da Guerra na sociedade portuguesa. A forma como se falava da Guerra nos finais dos anos 70 difere muito da forma como foi abordada nos anos 90 e como passou a ser abordada desde 2000. E isso expressa-se também nas próprias representações visuais e mensagens inscritas nos monumentos. Neste contexto, é também importante mencionar o que entendo como memória pública. Neste trabalho, é entendida como o conjunto de narrativas públicas dominantes que circulam na sociedade, seja nos media ou nas narrativas oficiais veiculadas pelo Estado e pelos discursos de líderes políticos.

Do ponto de vista social, gostava que o meu trabalho lançasse algumas recomendações políticas ou, pelo menos, algumas pistas para a discussão e reflexão para novas formas de reconcetualizar as exposições dedicadas à Guerra Colonial. É imperativo, urgente e necessário criar exposições dedicadas à Guerra Colonial e reformular as existentes. E defendo que é necessário um novo paradigma de musealização da Guerra.

Espero ainda que o meu trabalho venha a dar novos impulsos sobre aquilo que são os usos seletivos do passado no presente: a forma como determinados eventos históricos são recordados, muitas vezes, de forma parcial e seletiva, omitindo certos aspetos e rasurando outros, para um conjunto de fins políticos no presente. Nos últimos anos, com a ascensão da extrema-direita e de movimentos populistas, temos vindo a assistir a uma crescente instrumentalização do passado histórico e colonial, a fim de criar disputas políticas e memoriais no presente. E, muitas vezes, esta mobilização do passado na atualidade – na política, nos media, na esfera pública e nas redes sociais – acontece de uma forma instrumentalizada e manipulada para, nomeadamente, capitalizar apoiantes. Acho que o meu trabalho pode ser particularmente atual também neste âmbito, porque permitirá trazer novos entendimentos sobre o processo de resgate do passado e do seu uso parcial e seletivo no presente, com vista à prossecução de objetivos políticos e sociais.

Quais são as principais técnicas de pesquisa utilizadas?

Em relação à monumentalização, a minha metodologia consistiu em, numa primeira fase, fazer uma inventariação dos monumentos que existiam em Portugal. E este é um trabalho continuo, porque estão sempre a ser construídos novos monumentos. Construí uma base de dados com todos os dados possíveis que consegui reunir sobre a construção dos monumentos em Portugal: data de inauguração, autor, arquiteto, localização, fotografias, registo de inscrições no monumento e entidade financiadora. Depois, faço uma análise semiótica, em que tento analisar as representações que são projetadas nos monumentos através das opções escultóricas e iconográficas que foram feitas pelos autores e por quem projetou os monumentos. Faço também uma análise da epigrafia, ou seja, das mensagens que foram gravadas nos monumentos: a quem são dedicados, que tipo de mensagens têm, porque há vários tipos de abordagem, com maior ou menor complexidade.

Além desta análise semiótica e da epigrafia, em alguns casos e sempre que possível, faço uma análise dos cadernos de encargos e dos projetos de arquitetura, no sentido de perceber quais foram as ideias e representações que estavam subjacentes aos autores quando projetaram o monumento. Selecionei também um conjunto de monumentos – seis estudos de caso – que considerei relevantes para serem analisados com mais detalhe pelo conjunto de representações particulares que detinham. Nestes casos, fui entrevistar os autores, para tentar perceber quais tinham sido as intenções para projetarem aquele tipo de discurso e mensagem nos monumentos, tanto visuais como narrativas. Faço ainda uma revista de imprensa e uma análise dos discursos que são proferidos nas cerimónias de inauguração dos monumentos, no sentido de tentar identificar quais são os vetores e as motivações dos agentes que promovem estes processos e dos sentimentos das comunidades homenageadas.

Em relação à musealização, aquilo que fiz, numa primeira fase, foi visitar todos os museus do país que tinham exposições dedicadas à Guerra Colonial. Fotografei os espaços, os conteúdos e as peças expostas, e encetei também conversas exploratórias com os rececionistas. E o que faço neste caso é uma análise de conteúdo dos elementos textuais e visuais, sejam imagens ou peças, que estão expostos. Em alguns casos, fiz também entrevistas a curadores de museus, para tentar perceber a forma como tinham trabalhado e feito a pesquisa, quais tinham sido as opções tomadas, as dificuldades, e as narrativas museológicas definidas. No caso dos diretores dos museus, vários dos quais também entrevistei, procurei perceber se tinham alguns planos ou propostas concretas para a criação de novas exposições dedicadas à Guerra, e também a forma como eles próprios viam a relação entre a musealização de um passado difícil e a forma como entendiam que se devia abordar o tópico da Guerra Colonial e dos antigos combatentes nos museus que dirigiam.

Quais são os maiores desafios do processo de construção de um projeto de investigação de doutoramento?

Diria que a gestão do tempo e das prioridades, a definição de metas e a distinção entre o que é essencial e acessório são sempre desafiantes. Para além disto, diria que, em termos pessoais, tive três principais desafios.

Um dos maiores desafios foi o facto de não estar inteiramente dedicado ao doutoramento. Só há cinco meses é que estou dedicado a 100% ao doutoramento, altura em que ativei a bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Quando iniciei o doutoramento, estava a trabalhar no CROME como gestor de projeto e, nos primeiros cinco anos e meio, mais de metade do meu tempo era dedicado à gestão do projeto, sobrando o resto do tempo para a investigação. E é desafiante não estarmos dedicados a 100% a este tipo de trabalho. Mas o facto de estar integrado numa equipa de investigação acabou por me ajudar a ultrapassar esse desafio. Acho que esta é uma das recomendações que gostaria de deixar: sempre que essa possibilidade exista, aproveitem para se integrarem num grupo de investigação ou de trabalho, que não exija muito tempo, mas que permita estar em contacto com outros colegas e investigadores que trabalham tópicos próximos dos nossos.

O outro grande desafio foi o aprofundamento de conhecimentos. No meu caso, comecei a trabalhar um tema que era novo. Já tinha a intenção de fazer doutoramento, mas não era exatamente este o tópico que pretendia trabalhar, mas acabou por surgir por causa do meu envolvimento no CROME. Quando comecei a trabalhar no projeto, sabia muito pouco sobre a Guerra Colonial Portuguesa e, por isso, foi necessário estudar, ler muito, ver filmes e documentários. Além deste desafio de atualização de conhecimentos sobre o tema, foi também necessário enriquecer a bibliografia e compreender as metodologias qualitativas, que também não dominava (na minha tese de mestrado, sobre diplomacia económica, tinha trabalhado com metodologias quantitativas).

Por fim, destacaria o desafio da escolha do tema. Considero que é muito importante identificarmos um objetivo de pesquisa que seja diferenciador. Já há muito conhecimento produzido e é importante pensarmos em algo inovador, que possa trazer um novo contributo teórico para a academia, mas que também possa ter algum impacto social. Todos os projetos têm o seu mérito, mas acho que é fundamental termos presente a necessidade de inovar. Como o doutoramento é um processo desgastante, extenuante e duro, é importante termos um propósito. Precisamos dessa motivação para nos puxar e fazer avançar nos momentos mais difíceis deste percurso.

Como é que a possibilidade de fazer um doutoramento surgiu no teu caminho?

Desde o 9.º ano, já tinha definido que gostaria de frequentar no ensino superior o curso de Ciência Política e Relações Internacionais. Sempre quis ter uma carreira internacional: o meu sonho era trabalhar para uma organização internacional na área da cooperação para o desenvolvimento ou da ajuda humanitária. Nunca pensei, de todo, numa carreira académica. Quando estava a terminar o mestrado, comecei a enviar candidaturas para várias vagas de emprego. E a oportunidade que surgiu primeiro, sem eu estar à espera, foi a possibilidade de ficar com uma bolsa de gestão de ciência num centro de investigação da Universidade do Minho. Seguiu-se o mesmo tipo de trabalho no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), onde cheguei em 2010. Treze anos depois, ainda estou nesta área!

A experiência de investigação no mestrado foi tão interessante e fez-me sentir tão estimulado que acabei por me candidatar a um doutoramento quando estava a trabalhar na Universidade do Minho. Nessa altura, a minha ideia passava por continuar a investigar a área da diplomacia económica, mas com a mudança para Coimbra, para o CES, acabei por não avançar no doutoramento. Acabei por me ver forçado a adiar essa possibilidade, por vários motivos pessoais e profissionais, mas sempre alimentei este “bichinho” da investigação. E quando o Miguel Cardina ganhou o projeto, acabei por concorrer, ser aceite e acabou por ser o caminho no CROME que me trouxe ao doutoramento.

Gostarias de partilhar algumas dicas com os/as estudantes que estão também a desenvolver um projeto de investigação?

Começaria por dizer para escolherem muito bem a vossa equipa de orientação. É também muito relevante a integração em equipas de investigação, tal como referi anteriormente. Ao longo deste percurso, é também importante irmos colocando algumas questões a nós próprios sobre o projeto – a sua importância e o que é que ele vai acrescentar em termos de conhecimento e de recomendação política, por exemplo – e essas respostas devem ser vertidas na tese. Durante este caminho, estejam também prontos para lidar com a mudança e para adaptar os projetos, porque isso acontece a quase toda a gente.

Gostava ainda de dizer que o doutoramento é um processo muito duro e extenuante. E, por isso, devemos escolher um tema que nos apaixone e pelo qual tenhamos muito interesse. Claro que o interesse e a motivação vão oscilando ao longo do processo, mas a paixão inicial e o desejo de saber mais sobre o tema é aquilo que nos vai agarrar nos momentos de cansaço e de desespero, quando sentimos que não conseguimos ler ou escrever mais.

Finalmente, acho importante que se faça uma reflexão sobre as motivações para fazer um doutoramento. Na minha opinião, acho que devemos fazer um doutoramento para concretizar, em primeiro plano, o desejo de aprender. Claro que é possível fazê-lo com outras motivações, mas acho que a sede de conhecimento ajudará a manter a motivação ao longo do percurso. 

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM
Fotografia: Paulo Amaral, DCOM      
Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR